O Marco Civil está a caminho da aprovação na Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei 2126/2011 deve ser votado na sessão de 14h30 desta quarta-feira (07/11) pelo Plenário. O Marco Civil, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, é a primeira regulamentação geral da rede no país. Apesar de sua enorme importância, ainda há muitas dúvidas sobre o assunto por parte da população – especialmente aos internautas de plantão. Por isso, o TechTudo conversou com especialistas renomados para esclarecer o tema.
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Antes de mais nada, é preciso entender o que é o Marco Civil. Como o próprio nome sugere, ele tem por objetivo definir os aspectos civis da vida na Internet - e não os penais. Isso significa que, ao contrário do que muitos pensam, o texto não estabelece punições para cibercrimes ou violações de direitos autorais, por exemplo, que deverão ser tratadas por leis específicas posteriores.
Em linhas gerais, o princípio básico do projeto é proteger e garantir, de forma legal, os poderes dos cidadãos na Internet. Este foi o motivo principal para que o projeto fosse descrito como "A Constituição da Internet" pelo então ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, à época de sua criação.
Provedores não são responsáveis pelo conteúdo dos usuários
Elaborado pelo Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em parceria com o Ministério da Justiça, o Marco Civil tem como principal característica a defesa da liberdade na rede. Esse valor se aplica tanto aos indivíduos quanto aos provedores, como fica claro no artigo 15º, que afirma que estes últimos não poderão ser responsabilizados pelas publicações de seus usuários, a menos que desrespeitem ordem judicial. Esse, aliás, foi o principal motivo para que o Google, o Facebook e o Mercado Livre divulgassem, em setembro deste ano, uma carta em conjunto apoiando o projeto.

Tecnologia da FGV (Foto: Divulgação)
Para Bruno Magrani, um dos professores da FGV atuante no processo de composição do texto, e também coordenador do Observatório Brasileiro de Políticas Digitais, essa ideia é fundamental para que a web se mantenha democrática. "Os provedores estão em uma posição de potencial controle. Quando as pessoas vêem as empresas nessa posição, acham mais fácil colocar a responsabilidade sobre elas. O problema é que, se a gente tem uma regulamentação que responsabilize esse provedor, ele vai começar a censurar tudo. Então, somente as informações oficiais, aquilo que os governos publicam, serão divulgadas”, avaliou.
Embora se diga favorável ao texto do Marco Civil, de uma forma geral, o advogado de direito digital Victor Haikal contesta esse item do projeto. De acordo com ele, a obrigatoriedade de ordem judicial poderá acarretar em lentidão na retirada de conteúdo impróprio de um site. "Uma das alternativas é o provedor ficar obrigado a tirar do ar o conteúdo imediatamente e analisá-lo. Caso seja verificado que ele não infringe qualquer lei, o material volta à rede. Uma outra solução é o provedor analisar, no momento da denúncia, para avaliar se o conteúdo apresenta algum crime gritante, como pedofilia ou motivação a ódio. Se sim, ele terá o dever de removê-lo na hora. Mas se a infração for mais sutil, o material seria preservado no ar e só sairia após decisão judicial", argumentou.

(Foto: Leonardo Prado/Agência Câmara)
Segundo o relator do projeto, o deputado federal Alessandro Molon (PT/RJ), apesar de parecerem razoáveis em uma primeira análise, as sugestões do advogado podem ser perigosas, uma vez que conferem às empresas o poder do Judiciário. "O objetivo do artigo 15º é evitar que os provedores julguem a legalidade ou ilegalidade de um conteúdo, porque essa decisão deve caber à Justiça", diz. Bruno Magrani endossou o discurso do parlamentar, lembrando que o item é fruto de reivindicações da sociedade civil, que se manifestou contrária ao plano de responsabilizar empresas justamente por medo de censura ao que é disponibilizado na Internet.
É importante ressaltar que o artigo em questão, juntamente com muitos outros, teve redação alterada após vários debates presenciais e virtuais entre cidadãos e a Câmara dos Deputados (Veja o texto final). Esse é um dos aspectos mais significativos do Marco Civil, que se transformou no primeiro projeto de lei colaborativo do Brasil. Somente entre os meses de abril e maio deste ano, foram registrados mais de 12 mil acessos e 374 manifestações. "O projeto começou a ser discutido no Ministério da Justiça por uma demanda da sociedade, que exigiu que fosse criada uma lei para garantir os direitos na web antes de se discutir os crimes praticados nela", relembrou Molon.
Afinal, o que é a neutralidade?

O artigo que decididamente emperra a votação do projeto na Câmara é o 9º, que fala sobre a neutralidade. E isso não aconteceu por acaso, afinal o tópico afeta vários interesses políticos e econômicos, especialmente das empresas de telefonia. Essencialmente, o conceito significa que toda e qualquer informação que trafega pela rede deverá receber tratamento igualitário. Em outras palavras, em uma rede neutra, não é permitido o "traffic shaping" (modelagem do tráfego, em tradução livre), que estabelece quais dados são prioritários, impedindo, assim, que o provedor determine o quê ou como você acessa a Internet.
A neutralidade é defendida contundentemente por Alessandro Molon, que, por sua vez, recebe o respaldo de grande parte da sociedade civil organizada. "Ela é a garantia de que os dados não serão discriminados pela sua origem, conteúdo, destino ou terminal de acesso. Sem isso, o provedor poderá beneficiar as empresas com as quais já tenha feito algum tipo de acordo", analisou.

Digital (Foto: Divulgação)
Um dos muitos exemplos disso é o Skype. Sem uma rede neutra, as operadoras de telefonia poderiam perfeitamente diminuir a banda da aplicação, o que as favoreceria. Serviços como YouTube e BitTorrent também poderiam se tornar alvos frequentes, já que muitas dessas empresas controladoras oferecem TV a cabo, o que as torna diretamente interessadas em não permitir downloads de filmes.
Essas interferências também preocupam o advogado Victor Haikal, que faz coro com o petista. "A ausência de neutralidade interfere muito na questão do conteúdo, pois impacta diretamente nos resultados de busca. Isso é extremamente prejudicial à Internet, já que sua principal característica é ser a grande fuga do que dizem os governos e as grandes corporações. Se não houver neutralidade na rede, há uma enorme brecha para a censura", alertou.
Como toda polêmica, obviamente, há os que discordam do conceito. Para o economista da FGV Arthur Barrionuevo, as muitas interpretações sobre o termo (neutralidade) são um indicativo de que o texto da proposta deveria ser alterado. Segundo ele, a ideia de igualdade é boa, mas a falta de flexibilidade pode ser um problema.

em Economia (Foto: Reprodução)
"O tratamento igualitário a todos os dados gera uma espécie de fila na rede, o que acarreta em congestionamento. Se os provedores só puderem oferecer qualidade única, isso irá reduzir a velocidade média do tráfego na rede. Acredito que os provedores devam ter a possibilidade de fazer um gerenciamento inteligente das informações", defende. Ele ainda exemplifica. "O Projeto de Lei atual age de uma forma pela qual, se fosse aplicado aos Correios, proibiria serviços como o Sedex, por exemplo", compara Barrionuevo, que acredita que a neutralidade irá desestimular o investimento em infraestrutura e o surgimento de novos provedores.
O professor Bruno Magrani alega justamente o contrário. Para ele, a neutralidade está diretamente ligada à inovação tecnológica e é indispensável para o surgimento de startups. Isso porque, ao tratar pequenos e grandes sites da mesma forma, cria-se um ambiente favorável ao crescimento das novas aplicações. "O Facebook surgiu como uma rede social apenas da Universidade de Harvard. Ele só pôde se tornar o que é hoje graças à neutralidade da rede. Se houvesse discriminação no tráfego de dados, qualquer empresa de telefonia poderia impedir seu crescimento, limitando a banda. Se um empreendimento está começando, ele não tem capital suficiente para competir com grandes portais já estabelecidos, e pode acabar falindo", ponderou.
Garantia de privacidade do usuário
A privacidade dos usuários é outro ponto bastante presente no Marco Civil. Os artigos de 10º a 13º, que versam sobre a guarda de informações, determinam que provedores de conexão mantenham os registros de atividades por no máximo um ano. Já provedores de aplicação (Facebook, Google) não precisariam armazenar esses dados e, se o fizerem, deverão manter as informações em sigilo. De acordo com o texto do projeto, os relatórios só seriam solicitados fora dessas condições mediante ordem judicial, emitida por razão de investigação criminal.
Victor Haikal se opõe ao artigo. Ele considera que, quando se criou o projeto, a ideia era fazer uma analogia aos grampos telefônicos - em que só se guardam as informações de alguém quando essa pessoa está sob investigação -, mas a analogia é assimétrica. "Com apenas um logon, uma pessoa pode fazer um estrago imenso, como postar várias fotos de pedofilia, por exemplo, que irão se alastrar pela Internet. Esse tipo de dano é muito difícil de acontecer com apenas uma ligação", sustentou o advogado, que também considera o tempo de um ano para a guarda de registros insuficiente. "Algumas investigações demoram muito mais do que isso. Depois desse período, a materialidade de um crime irá se perder".
Por sua vez, Bruno Magrani é categoricamente oposto à ideia apresentada por Haikal. De acordo com o professor, uma sociedade extremamente controladora não é necessariamente saudável para os cidadãos. "Para prevenir os crimes poderíamos instalar câmeras em todas as esquinas e guardar esses registros para sempre, por exemplo. Mas a gente quer isso? Um Estado que saiba de cada detalhe na nossa vida, e que tenha uma quantidade de informação tamanha que poderia gerar um enorme dano à sociedade, caso esses dados recebessem um tratamento incorreto?", questionou. Ele ainda interpretou como sendo um problema policial, e não jurídico, a resolução dos crimes ser demasiadamente demorada no Brasil.
Resumindo: o que muda com a aprovação do Marco Civil?

Não há dúvida de que o Marco Civil representa um enorme avanço no que diz respeito à definição de regras claras no mundo virtual. Embora ainda esteja em pauta após 17 anos do início do serviço no Brasil, é importante destacar que o país está na vanguarda deste processo. Atualmente, apenas Holanda e Chile possuem legislações análogas.
"Isso é um reflexo do papel que o Brasil desempenha no cenário atual. Nós somos um dos países que mais utiliza a rede", disse Molon, lembrando que a lei foi elogiada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Para Magrani, o estabelecimento de critérios é o principal ganho da sociedade com o projeto. "Os indivíduos vão continuar seguros para se comunicarem via web. Todos os atores envolvidos saberão exatamente o que esperar do ambiente online", declara.
Na prática, o Google, por exemplo, não precisaria mais retirar um determinado conteúdo postado por usuários do Orkut. Da mesma forma, ele poderia ser indiciado criminalmente caso fornecesse informações pessoais ou de seus registros indevidamente. Barrionuevo concorda que a lei enuncia princípios importantes, mas acha que, da maneira como está, a administração das redes se tornará mais burocrática. "Isso vai acontecer seja pelas regras que pretende impor sobre o tráfego na Internet, seja pela centralização de decisões na Presidência da República", afirmou.
O economista considera que a rigidez do texto, em relação à neutralidade, irá gerar dois problemas: ou fará com que as operadoras tenham que investir um valor muito mais elevado para que todos tenham velocidade alta, o que acarretará no encarecimento do acesso à Internet; ou a velocidade média mais baixa para todos prejudicará os que precisam de maior rapidez na web. Para Bruno Magrani, os prejuízos são ainda maiores sem o Marco Civil. "Hoje, temos uma rede livre e que serve como plataforma de inovação. Mas sem uma legislação, temos visto muitas decisões conflitantes no poder judiciário, desestímulo a novos negócios na rede e cerceamento da liberdade de expressão", apontou.
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